sexta-feira, 15 de junho de 2012

Viajantes num carrinho de compras


Viajantes num carrinho de compras

Cláudia teve um dia de encontrões e de risos; Mário, de “carvalhadas” silenciosas. Há dias assim: um pouco de barbárie de meninos selvagens a correr pela floresta do consumo, de mala à tiracolo e mal dependurados na gravata arrumada no pescoço.
Tinham chegado primeiro e, agora, também primeiros, começam a empurrar sonhos e lembranças.
- Vamos.
Agarrados aos sacos, cestos e carrinhos, correm pelos atalhos de um novo mundo, sempre à espreita de confusão no fundo do corredor.
Compra-se o desnecessário e abandona-se o que ontem “fazia tanta falta”.
Os fazedores de opiniões e de bem estar sopram-lhes uma suave voz de felicidade, porque “hoje há paz no mundo”. Em cada carrinho vem uma fatia de bolo de chocolate quente para aquecer, ainda mais, a ausência de pensamento.
Tudo está melhor: há dinheiro no bolso vazio e justiça para toda a gente.

 Cláudia e Mário estão contentes. Esquecem e enchem os sacos com a falta de dinheiro retirado da carteira virtual; a outra há muito tempo que se tornou inútil.
Empurram o carrinho carregado de lembranças e de azáfamas.
 - Cinco quilos de massas e quarenta e oito de cervejas.
Lá fora, a vida está um deserto completo.
 No final de Junho, ou um pouco mais tarde, virá o preço. Tudo tem um preço.
- Venham! Venham!
Veio tudo por metade do preço: cinco quilos de massas e quarenta e oito de fantasias enlatadas.
Apenas a dor do dia de amanhã permaneceu fora do carrinho carregado de coisas e de muito esquecimento.

Cláudia e Mário seguem a vida de sacola às costas, com sacos de supermercados dependurados nas mãos.
Os construtores de bem-estar segredam-lhes a bondade das cavernas escarpadas de prateleiras! Enganam-se e enganam-nos: em vez de um quilo de arroz, rasgam-lhe os sacos com meia dúzia de pacotes de massas, duas embalagens de coca cola e nove ou dez latas de sardinha. O bacalhau esgotou. A carne está a demorar muito tempo a embalar e queda-se por aí. O peixe chegará para a semana. Mas o Whisky, o Whisky que ninguém conhece, também aquece e seca as palavras na garganta, por metade do preço.

-Vamos.

Em casa, Mário olhou para os sacos e para a carteira, retirou uma cerveja, sentou-se na velha cadeira e olhou o pôr do sol.
Cláudia aconchegou um pouco mais a despensa da vida e não pensou no almoço de amanhã. Um pouco mais tarde, sentiu o luar tímido a bater-lhe à janela. Gaivotas viajantes num carrinho de compras e de sonhos, agacharam-se sob a realidade e a ficção.
O dia emudeceu, ficou sem risos e sem “carvalhadas” silenciosas.
Era noite. Cada vez mais noite.