Viajantes num carrinho de compras
Cláudia
teve um dia de encontrões e de risos; Mário, de “carvalhadas” silenciosas. Há
dias assim: um pouco de barbárie de meninos selvagens a correr pela floresta do
consumo, de mala à tiracolo e mal dependurados na gravata arrumada no pescoço.
Tinham
chegado primeiro e, agora, também primeiros, começam a empurrar sonhos e
lembranças.
-
Vamos.
Agarrados
aos sacos, cestos e carrinhos, correm pelos atalhos de um novo mundo, sempre à
espreita de confusão no fundo do corredor.
Compra-se
o desnecessário e abandona-se o que ontem “fazia tanta falta”.
Os
fazedores de opiniões e de bem estar sopram-lhes uma suave voz de felicidade,
porque “hoje há paz no mundo”. Em cada carrinho vem uma fatia de bolo de
chocolate quente para aquecer, ainda mais, a ausência de pensamento.
Tudo
está melhor: há dinheiro no bolso vazio e justiça para toda a gente.
Cláudia e Mário estão contentes. Esquecem e
enchem os sacos com a falta de dinheiro retirado da carteira virtual; a outra
há muito tempo que se tornou inútil.
Empurram
o carrinho carregado de lembranças e de azáfamas.
- Cinco quilos de massas e quarenta e oito de
cervejas.
Lá
fora, a vida está um deserto completo.
No final de Junho, ou um pouco mais tarde, virá
o preço. Tudo tem um preço.
-
Venham! Venham!
Veio
tudo por metade do preço: cinco quilos de massas e quarenta e oito de fantasias
enlatadas.
Apenas
a dor do dia de amanhã permaneceu fora do carrinho carregado de coisas e de muito
esquecimento.
Cláudia e Mário seguem a
vida de sacola às costas, com sacos de supermercados dependurados nas mãos.
Os construtores de bem-estar
segredam-lhes a bondade das cavernas escarpadas de prateleiras! Enganam-se e
enganam-nos: em vez de um quilo de arroz, rasgam-lhe os sacos com meia dúzia de
pacotes de massas, duas embalagens de coca cola e nove ou dez latas de
sardinha. O bacalhau esgotou. A carne está a demorar muito tempo a embalar e queda-se
por aí. O peixe chegará para a semana. Mas o Whisky, o Whisky que ninguém
conhece, também aquece e seca as palavras na garganta, por metade do preço.
-Vamos.
Em
casa, Mário olhou para os sacos e para a carteira, retirou uma cerveja, sentou-se
na velha cadeira e olhou o pôr do sol.
Cláudia
aconchegou um pouco mais a despensa da vida e não pensou no almoço de amanhã.
Um pouco mais tarde, sentiu o luar tímido a bater-lhe à janela. Gaivotas viajantes num
carrinho de compras e de sonhos, agacharam-se sob a realidade e a ficção.
O
dia emudeceu, ficou sem risos e sem “carvalhadas” silenciosas.
Era
noite. Cada vez mais noite.