quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Olha à tua volta

Olha à tua volta

Aproximaram-se da avenida e dos semáforos, vindos dos cafés, da sapataria, da estação ferroviária, do Rossio, dos Restauradores, da avenida da Liberdade. Nas margens da passadeira de peões, frente a frente, formavam-se pequenos magotes a olharem o outro lado da rua e as cores dos sinais. Eram eles que ditavam quem deveria ser primeiro. Os semáforos retinham os olhares alinhados e marcavam o início e o fim do tempo de cada um; já era tempo dos automóveis pararem e deixarem a rua para os peões e os condutores a pianizar o volante com os dedos nervosos. Todos comandados pelo ritmo da luz verde, amarela, vermelha.

Aproximei-me do grupo que esperava à frente do teatro nacional. O amarelo apareceu e desapareceu. O verde. O verde que os peões esperavam por entre o espreitar do relógio e os olhares indiscretos para o outro lado da passadeira.

Verde. Caiu o verde. Podem atravessar a avenida. Podemos atravessar enquanto o verde relampejar. Os dois grupos formados à pressa, postados no topo das listas brancas, entram rápidos no empedrado. Alguns correm aos ziguezagues, irreverentes e desalinhados. No meio da via, juntam-se, trocam de lugar: metade para um lado, outra metade para o outro. Cada um olha para o seu lado da vida e da estrada e segue o seu caminho com pressa ou sem pressa, em silêncio, à conversa, de mãos dadas, ou de olhos desconfiados dos companheiros de estrada e com medo dos automóveis que travam próximos de quem se tornou um entrave na corrida citadina.

No centro da passadeira desfez-se o grupo de caminhantes em sentidos opostos. Fixei o listado de branco da passadeira. À minha frente, no chão, podia ler-se: olha à tua volta. São os teus adversários. Despacha-te para seres o primeiro. Mais ou menos isto. Não fixei bem o texto, nem o produto publicitado. Voltei a ler e, como quem procura não sei o quê, voltei para trás. Abandonei a passadeira, os outros peões, os automóveis, a estação do Rossio e o teatro nacional.
Um grupo excursionista chegou, olha tudo e todos. Atravessa lento.
Tudo voltava a repetir-se depois: formavam-se novos grupos nos topos da passadeira, os automóveis voltavam a parar e, de novo, a correr. Sempre à espera do verde, amarelo e vermelho.

Eram adversários uns dos outros.

São estes sinais que nos comandam e nos tornam autómatos quando, ao mesmo tempo, passamos mensagens de heroicidade individual e edificamos estátuas de heróis vazios. Teimamos em viver assim. Sobreviver parece semelhar-se a um breve caminhar por uma estreita rua tecida de passadeiras desumanas: São teus adversários. Despacha-te para seres o primeiro. Todos os meios servem para nos tornar egoístas e primeiros.
Abandonei a passadeira, ziguezagueei e, cidade fora, segui o caminho da avenida da liberdade, onde não tive adversários nem nunca fui primeiro.


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Ah! Winnie, Winnie, Winnie


Ah! Winnie, Winnie, Winnie[i]

Cena I - As mesas estão alinhadas em forma de retângulo, prontas para sustentar os cotovelos de quem chegava.

Chegaram alheios. Sentaram-se: um recostou o queixo na concha da mão, outro fixou as janelas que começavam a fechar-se sob as nuvens distantes. Alguns conversavam. Estava feita a equipa: observadores, agentes e dirigentes, leitores que sabem ler, mesas e secretárias, fazedores de opinião, engraxadores e cavadores. Há quem pense em silêncio e permaneça em silêncio e quem converse sem ter nada para dizer. Quase todos se sentiam agastados com a tarefa que tinham que cumprir.

- Comece-se o ato.

Cena II - O trilho convocado está tracejado há muito tempo.

Encostados aos braços dobrados pelos cotovelos, não tinham nada a dizer. Não havia nada para dizer. Não houve discursos, nem formas de recomeçar.
O tempo sentia-se quente e sem brisas a tatearem os vidros. Os pássaros esqueceram-se de aparecer para aliviar aquele jeito de estar e ficaram adormecidos, longe.
- Acabemos isto e falemos de um novo encontro. Já dissemos tudo por hoje. Corram as janelas, desencaixilhem os rostos das conchas das mãos e limpem as lentes dos óculos. Façamos uma pausa para reflexão.

Descruzaram-se as pernas, arrastaram-se as cadeiras, ajeitaram-se as saias e passaram-se as mãos a alindar os cabelos. Alguns tossiam, outros engoliam a tosse e o desassossego das interrogações.
O dia está bonito. É preciso que se pense que o dia está bonito.

Cena III - A terra enluarada regressa ao ponto do sol nascente.

Abriram-se novamente as janelas, as mesas voltaram a ser retângulo e recolocaram-se os rostos nas mãos. As aves ainda não tinham regressado, nem se sabia se voariam por ali: um nó doloroso abafava-lhes o canto e o voo. Não vinham, nem cantavam.
Tudo decorria lento. Contaram-se as palavras entarameladas, a tosse, o engolir em seco, os risos e alguns sorrisos.
-Terminámos?
-Sim, terminámos.

As cadeiras deslizaram a custo, as pernas voltaram a descruzar-se e as mãos ficaram sem gestos.
(Re) alindaram-se os cabelos, apertou-se um pouco mais o cinto, sufocou-se a tosse, as janelas voltaram a fechar-se e o retângulo de mesas foi desfeito. Definitivamente.
Aos solavancos as conversas tomaram, a pouco e pouco, conta das inquietações.
-É melhor ficar assim. E ficou.

Cena IV - Gente concheada junta-se em redor de “sa senhor”.

Falavam pouco, olhavam mais e sorriam menos. Todos queriam ouvir, mas não sabiam o quê.
Recomece-se: - cuidado com os que teimam em voar, deem-se as mãos aos indiscretos, aponte-se o devido lugar “Àqueles que dizem não” castiguem-se os maus, silenciem-se os silenciosos e faladores, instale-se uma teia informativa, movam-se inquéritos, promovam-se os fiéis, os crentes e os ofertantes e tudo será mais tranquilo. Instale-se a guerrilha cá dentro, lá fora, perto ou longe, nas ruas, avenidas, ruelas, palácios, castelos e casas senhoriais. Fechem-se todas as janelas para que as montanhas de papéis, ainda que farpeadas, não voem. Faça-se um relatório em cima de outro, explique-se o primeiro com um segundo e espalme-se uma foto para fixar bem o tempo e o momento que se matou.
Amanhã, tudo será diferente: tudo estará bem na robustez do tempo e “Aquele que diz não”, seguirá Brecht n, “Aquele que diz sim”[ii]: lançado de um penhasco, edificará o cenário que o depositará na caixa d,”O Marinheiro”[iii].
A sociedade é nossa e será nova.

Cena V - Nem todos acreditam, alguns temem e cruzam olhares…faltam tantos anos!

Fecharam-se as janelas e atabafaram-se as palavras no fumo desejado do cigarro proibido.
(Voar não é uma evidência. É apenas sonho de sonhar).

Cena VI - O timoneiro, crente na sua descrença e na dos outros, desce - ou sobe, tanto faz - para o seu gabinete, arruma um cigarro no centro da boca e sopra o fumo de viés.

- "Mha senhor", posso entrar?
- Agora não.
- Desculpe, pensei que as janelas estavam abertas.
Os fazedores de opinião observaram, observaram muito, e esfregavam as mãos enquanto caminhavam e, no movimento das palavras, ouviam-se ao fundo da rua. Ali, tudo estava bem. Afastaram-se e foram tomar café. Voltariam. As aves de arribação voltam sempre ao local do ninho.

Cena VII - Tudo é diferente:

- Melhor, pior? Não sei…sei apenas que não lemos “O Principezinho”[iv] e, por isso, não se cativaram as ruas que se cruzam pelos campos do rio Tejo. Cavaram-se túneis inglórios e abriram-se guerras inúteis por dentro e por fora. Num mau arremedo de Carlo Goldoni[v], construiu-se uma sociedade - teatro de atores de “commedia Dell, Arte” onde apenas entraram em cena Polichinelos, Arlequins e um ou outro Pantaleão.

Cai o pano - Regresso a esta sala das colunas e volto a apoiar os cotovelos numa daquelas mesas que um dia foram alinhadas em forma de retângulo.

Olhei as mesas, as paredes e as janelas, os discursos e os afazeres do tempo passado. Fiquei parado num gesto largo da memória e revisitei Winnie e Willie[vi]. Depois, fixei-me nas janelas. Os pássaros ainda não tinham regressado, mas não morreram. Teimosos e suaves ouviam-se cantar, distantes, num adejo circular sobre Winnie.
Ah! Winnie, Winnie, Winnie… tão angustiante - e só - foi o segundo ato dos teus “Dias felizes”, porque…na “sociedade atual falta-nos filosofia, precisamos do trabalho de pensar”[vii] e tu não pensas. Willie já não te ouve.


[i] Texto escrito com o pensamento em todas as “Winnie” e todos os “Willie” desta sociedade. A realidade é, quase sempre, ultrapassada por qualquer semelhança ou coincidência.
[ii] BERTOLT BRECHT (Augsburg, 10 de Fevereiro de 1898 – Berlim, 14 de Agosto de 1956), Aquele que diz sim; Aquele que diz não, 1929/1930
[iii] FERNANDO PESSOA (Lisboa 13 de Junho de 1888 – Lisboa, 30 de Novembro de 1935), O Marinheiro, 11/12 de Outubro de 1913. Texto publicado na revista Orpheu; nunca foi representado em vida do autor
[iv] ANTOINE DE SAINT-EXUPERY (29 de Junho de 1900 -31 de Julho de 1944), O Principezinho, Nova Iorque, 1943
[v] CARLO GOLDONI (Veneza, 25 de Fevereiro de 1707 – Paris 6 de Fevereiro de 1793), reconhecido pela “commedia dell,art”
[vi] SAMUEL BECKETT (Dublin, 13 de Abril de 1906 – Paris 22 de Dezembro 1989) Dias felizes – estreia em Nova Iorque em 1961. Winnie e Willie são personagens do texto dramático em dois atos Dias felizes
[vii] JOSÉ SARAMAGO (Azinhaga, 16 de Novembro de 1922 –Lanzarote, 18 de Junho de 2010) - Prémio Nobel da Literatura, 1998