Com alguma
frequência, a “Sala das colunas” tem refletido sobre os caminhos do “vale
tudo”, do “desejar tudo”, com ou sem possibilidade de se ter. Para se ficar bem
socialmente, confundem-se sonhos com realizações egoístas e autocontemplativas.
É
bom sonhar. Muito bom mesmo! Mas o sonho não poderá conduzir-nos ao “vale tudo”
para que tudo o que se julga sonho se torne realidade. “Quero e tenho”, seja ou
não importante para viver, seja ou não contributo fundamental para se estar bem
com a vida. Todos temos o direito e o poder de sonhar quando, como e com o que
quisermos. Ainda não é proibido sonhar. O problema surge quando se passa do
sonho para o “à custa do que custar e do vale tudo”, para que aconteça: “quero,
tenho”.
A
sociedade em que vivemos parece esquecer-se do espaço que cada um ocupa e do que
é fundamental em cada momento. Perdeu, ou confundiu, os valores. A não invasão
do espaço da dignidade do vizinho é coisa do passado. Pouco importa o “bem
social” a não ser que esse “bem” sirva para “me servir bem”. Regendo-se por
desejos pessoais, cada indivíduo parece querer fixar os seus próprios objetivos
de vida, esquecido de que a seu lado há gente que também pensa, deseja, sonha.
Os valores que alicerçam a sociedade estão
abalroados, são coisa fora de validade. Os pequenos desejos, os pequenos
valores são elevados à categoria de objeto indispensável à vida. Quando o
desejo de uma jovem para 2013 – não tão jovem como isso – é ter uma mala, dita
clássica, de uma conhecida marca, é lícito interrogarmo-nos sobre os valores
que travejam esta sociedade.
- Mas já não se pode sonhar ter a tal mala
dos anos cinquenta? A jovem não invadiu o espaço de ninguém! Até vai juntar
dinheiro para comprar a mala…! É o seu sonho! Que mal haverá nisso?
- Não há mal nenhum. Cada um pode desejar ou
sonhar com o que lhe apetecer, mas perante este projeto para trezentos e
sessenta e cinco dias de uma jovem, é dever de qualquer cidadão interrogar-se sobre
o que é que esta sociedade está a valorizar na família, nos grupos de amigos,
na escola. Não é possível continuar a passar ao lado da vida, sem refletir
sobre o que se está a transmitir aos construtores do futuro, quando já nem as dificuldades
para viver dignamente, o emprego, o desemprego, a sobrevivência alimentar, o
saber ou a transmissão do saber que preocupam, mas sim “aquela mala”. Preta.
Pode-se,
certamente, ser feliz com muito pouco, mas torna-se demasiado difícil viver com
o futuro dentro de uma qualquer mala azul, amarela ou preta.
Nos
tempos da minha meninice, vi partir familiares e vizinhos para terras longínquas;
de comboio, de camioneta, “a salto”, mas sempre com a mala de cartão cheia de
sonhos que sustentavam a construção de um futuro melhor. Tudo mudou, mas
corremos o risco de entrar num circuito vazio de vida, quando “ter uma mala
preta” se constitui projeto de vida para um ano.
Enfim,
talvez a marca, sabendo do desejo da jovem e da publicidade que lhe foi feita,
realize este sonho, cedo. Será um pequeno contributo para a construção de uma
sociedade com fúteis pés de barro. Que a marca não se esqueça: a mala é dos
anos cinquenta. Preta. Se possível que venha afivelada com outros sonhos.