domingo, 24 de março de 2013

NINGUÉM MORRE POR SER FELIZ (2)


Ninguém morre por ser feliz (2)
Hoje, o ser humano é apenas um número. A sociedade é dirigida a partir dos números recolhidos minuto a minuto: isto subiu, isso desceu, aquilo manteve-se. Poucos se interrogam sobre as causas, sobre os porquês, sobre as possíveis soluções. Ouvimos charlas, conferências, participamos em discussões acaloradas sobre o assunto, mas pouco mais fazemos do que olhar para o mesmo quadro dependurado, há anos, na mesma parede. 

Este desastre social (a que nos referimos no texto ”ninguém morre por ser feliz (1) ”) deveria fazer parar os responsáveis pela direção dos povos e forçá-los a procurarem respostas para os porquês destes números.

Haverá certamente muitos motivos para as quais os especialistas na matéria darão sábias respostas. Não me atrevo a inventar causas, nem propostas de solução. Limito-me a refletir um pouco sobre o assunto e a escrevinhar sobre situações possíveis que podem contribuir para a anulação dos valores que deveriam ser suporte do ser humano: destruição do que era mantido como estabilizador individual e social sustentável; falta de condições mínimas de sobrevivência, sem esperança de soluções; quebra dos reguladores de ontem e ausência de suportes dignos da vida em sociedade; escravatura a que se aproximam as atividades laborais e a banalização da instabilidade; sentido de posse total e individual de tudo o que pode render dinheiro e poder; ditadura dos grandes grupos económicos e financeiros que anulam os mais pequenos; domínio absoluto do dinheiro, onde as pessoas não contam; desumanização do ser humano alicerçada na ausência de valores dignificantes do agir do homem; loucura de viver ausente do outro e sem esperança de que, um dia, talvez tudo possa ser melhor. O desinvestimento afetivo interpessoal.

No meio desta selva desorganizada, parece não haver lugar para nos sentarmos à mesa e conversar sobre o dia de amanhã. Vive-se apenas o dia de hoje, sem cor e com poucos horizontes.

Governados por imberbes convencidos e gananciosos que ditam leis para se governarem, perdidos no destino, sem destino, sente-se o desastre de se viver nesta sociedade onde o ser humano deixa de o ser: é um número. Mas ai da sociedade constituída por pessoas que se tornam números: ou se transforma, ou definha e morre…porque não é possível viver com gente que se alimenta de gráficos tracejados por pessoas sem entusiasmo pela vida. “Para o deprimido, a vida não é fonte de alegria e de prazer; pelo contrário, é um sofrimento, uma dor. O depressivo não vive, sobrevive”, escreve a Visão.

No dia internacional da felicidade, não nos podemos admirar por encontrar Portugal e a Grécia nos últimos lugares do ranking da felicidade, mas isso também não passa de uma estatística…é apenas mais um dos 120 dias mundiais, aperaltados disto e daquilo, que talvez ainda nos façam lembrar de que ninguém morre por ser feliz!

Nota:Imagens captadas aquando da exposição de Roberto Chichorro em Aljezur - 10-01-2009





sábado, 23 de março de 2013

NINGUÉM MORRE POR SER FELIZ


  Ninguém morre por ser feliz (1)
Vinte de março de 2013: dia internacional da felicidade, instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Novinho em folha: tem apenas dois anitos e é capaz de perder-se no meio dos 120 dias já nomeados como dias internacionais disto e daquilo.

No dia internacional da felicidade, entretinha-me a vaguear na NET e, um clique aqui, um clique ali, acabei por ir parar ao Expresso.pt que titulava: “mais de cinco portugueses se suicidam todos os dias”. “…Os dados constam do projeto OSP-Europe, uma estratégia de prevenção preconizada pela Aliança Europeia contra a depressão (EAAD) ”.

Logo hoje…não haverá melhor tema para o dia mundial da felicidade?

Parei um pouco atordoado com o que acabava de ler, depois continuei: ”Portugal é o 3º país da Europa onde o suicídio mais cresceu nos últimos 15 anos, estimando-se que morram mais de cinco pessoas por dia”.

O texto prossegue com um conjunto de explicações e descritivos de modelos para reduzir esta tragédia, apontando-se como causas fundamentais as doenças mentais que afetam mais de dois milhões de adultos por ano (23%) e as depressões que afetam 400 mil pessoas (7,9% dos adultos).

Em Portugal morrem cerca de duas mil pessoas por ano, por suicídio ou por morte violenta indeterminada - o suicídio escondido. O estudo não aponta as causas das perturbações mentais, das depressões, ficando-se pela indicação dos números resultantes do trabalho de investigação, iniciado em Outubro de 2008.

Agasta-me entrar neste tema, por que me confunde, me enerva e entristece. 400 mil portugueses… dão para refletir.

Se escrevo sobre o assunto é mais para manifestar preocupações e interrogações, neste dia internacional da felicidade…porque ninguém morre por ser feliz. (Continua)

domingo, 17 de março de 2013

ESQUECIMENTOS


Talvez a televisão não tenha ficado ligada

Não sei se a Maria Inês continua a correr, corredor fora, com a boneca debaixo do braço, ou se a assistente, bonita, alta e quase magra, ainda espera pelas leituras da máquina de eletrocardiogramas. Sei apenas que, algures, numa qualquer parte destes recantos de espera, os olhos vão tornando o tempo mais pequenino a verem quem passa, quem entra e quem sai, ou entretidos a decifrar os rótulos ensimesmados sobre as portas: “cardiology; reception; counter; exit; acesso restrito”, sempre à espera que alguma se abra. Não há muita coisa para dizer, apenas alguns silêncios inquietos são entrecortados com preocupações que o matutar na vida oferece.

Por aqui, espera-se que tudo esteja bem, mas nem sempre está:

- Apagaste a televisão?
- Quem, eu?
- Foste o último a sair…
- Não, não sei.
- Se calhar deixámos a televisão acesa.
- Então, viemos embora e deixámos a televisão ligada?
-Talvez não…não sei… já nem nos lembramos do que fazemos…ao que nós chegámos… só não nos esquecemos de vir ao médico e do saquito dos medicamentos. Andamos por aqui a trambolhar pelos cantos com o saquito de plástico dos medicamentos, agarrados, como se fossemos uns drogaditos.
- Não te preocupes, talvez a televisão não tenha ficado acesa!
- E a luz está muito cara!
- Pois está…e se fosse só a luz…

Pouco convictos com a estória da televisão, olharam-se por entre os sulcos das rugas. Ele pegou num jornal deixado por ali ao acaso, olhou os títulos da primeira página e deixou-o cair para cima da cadeira do lado. Aquilo não lhe interessava. Coisas dos outros.

- Estamos velhos!
- Sr. Manuel, faça favor.
- Olha, é a nossa vez. Hoje demorou menos tempo.

Esperaram pouco e demoraram pouco.

- Pronto, estamos aviados, já temos a receita dos medicamentos… mas já fica caro vir à consulta…

A voz arrastava-se com os passos que iam ziguezagueando pelo corredor.

- A televisão ficou ligada?
- Deixa lá. Demorámos pouco tempo… e já temos a receita. Aqueles comprimidos, redondos e brancos, acabaram ontem… Ainda hoje vais à farmácia?
- Talvez…depois de passarmos por casa…e se tiver tempo.
- Tempo? – e esboçou um sorriso breve.

Lá fora, sentia-se o rio do esquecimento a correr para a solidão. 

quarta-feira, 13 de março de 2013

MEGA - AGRUPAMENTOS E SALVAÇÃO


No início do projeto da “Sala das colunas”, as diversas áreas temáticas foram seccionadas por colunas: coluna central; retratos vazios; artes e letras e coluna fotográfica. A estrutura simples do Blog não facilita as publicações nas últimas colunas referidas. Assim, correndo o risco de me envolver em amálgamas temáticas sem nexo, nem jeito, apenas passarei a publicar na coluna principal.

Os excertos que se publicam seriam enquadrados na coluna “retratos vazios”.





















Li estes dois excertos em dois jornais diferentes, sendo a entidade entrevistada, a mesma.

 Não sei se fiquei triste, se alegre, com o que li, mas estou convicto de que um timoneiro não pode, melhor, não deve proferir afirmações destas, publicamente e, pior ainda, enquanto diretor(a). 

Como não acredito em salvadores da pátria, em missões de recuperação de velhas escolas, nem em guerras inúteis, não vejo motivos para orgulho da caminhada feita, mas cada um pode fazer jus àquilo que tem.

...Afinal, fiquei mesmo triste com estes timoneiros deste país.

MARIA INÊS


Enquanto esperamos, cruzamos o olhar com outros olhares, distraídos. Estamos ali e pronto. Alheios, descruzamos as pernas e os olhos e esfregamos o nariz com os nervos da espera; pouco mais é possível fazer. 

Sentados, esperamos e desesperamos. Não somos muitos, mas esperamos.

- Maria Inês, faz favor.

A mulher de bata branca, bonita, alta e quase magra, varreu o corredor com os olhos castanhos, enquanto a mão direita deslizava suavemente pelos cabelos. 

 - Maria Inês!

Ninguém responde. Continuadamente distraídos, voltámos a cruzar olhares como se aquele chamar por Maria Inês nos interessasse. Seria impossível que não estivesse por ali uma Maria Inês só para responder ao apelo daquela mulher bonita, alta e quase magra.

-Ah! Estás aí!... Vá, é a tua vez!

Ficámos então a saber que Maria Inês andava por ali tranquila, a saltitar, corredor abaixo, corredor acima, abraçada a uma boneca de longos cabelos pretos. Parecia interessar-se mais com o olhar da mamã do que com quem a chamava.

- Vamos, podem entrar.

Maria Inês entrou para o gabinete de mão dada com a mamã. Nós continuámos por ali, alheios, à espera, a cruzar e a descruzar os olhares e as pernas.

Depois, um pouco depois, Maria Inês apareceu à porta, com a mesma boneca debaixo do braço, desinteressada com o que se passava à sua volta. Largou a mão da mamã e voltou a correr pelo corredor fora.

A mamã saiu do gabinete, lenta e triste. De olhos colados ao chão, deixou a porta entreaberta com um longo suspiro de sofrimento. Depois, olhou para trás e encostou um pouco mais a porta do gabinete médico e seguiu… seguiu desalinhada e mais anoitecida.

Inês regressou, aos saltitos, com a boneca debaixo do braço. Encaixou a mãozita na mão da mamã e fixou aquele olhar meigo que tão bem conhecia.

- Adeus, Maria Inês, até para a semana! – Ritualizou a mulher de bata branca. 

(Nota: fotografia: pormenor de um mural de GRAÇA MARTINS)