sexta-feira, 14 de setembro de 2012

INTERVALO


INTERVALO

Na tela surge a palavra intervalo. As luzes acendem-se. – Estou ansiosa por ver o resto – dizia a mãe dirigindo-se ao bufete…

Acabei de ler “Ravengar” de Fernando Campos. A estória deambula por entre jogos de interesses, peripécias rocambolescas, amor, naufrágios e misteriosos cavalheiros. “Ravengar é um texto de homenagem à linguagem cinematográfica”, onde se cruzam segmentos da linguagem teatral e memórias do texto fílmico do tempo do cinema mudo.

A intriga, demasiado rocambolesca para o meu gosto, apesar de tudo, foi-me segurando, sentou-me numa sala e apagou-me as luzes. Fechei a leitura integral da obra, não bati palmas ao “filme”, mas mantive na memória a epígrafe do livro: “Por vezes o bom Homero dormita.

 
Vamos seguindo o “ nosso filme” a dormitar à espera que as luzes se acendam e que chegue um qualquer intervalo. Sentamo-nos inseguros na plateia e aguardamos que a sessão termine. As imagens vão correndo, um ou outro som mais forte coloca-nos em sobressalto. Seguimos a dormitar ou a ressonar pela vida fora e, às vezes, quando acordamos, o filme já terminou e não demos pelo que foi passando à nossa frente: carros e carroças cheios de mentiras, cavalos, cães, gatos a passarem fome, rinocerontes fartos de gordura, algumas aves sem voarem, dias, semanas e anos inutilmente parados, traições misteriosamente rocambolescas, naufrágios e falências mentirosas, roubos, sacanices e mortes de noivos que nunca o chegaram a ser.

Ao som desvairado de um piano, a senhorinha Jessie Walcott![3] surge na tela com um olhar belo e enigmático. Nesta estória também há pessoas que passam por nós sem lhe dizermos nem bom dia, nem adeus. Não nos dizem, nem dizemos, nada; outras são demasiado bonitas para entrarem neste filme. Tudo está bem, se não acontece no pequeno cenário que construímos à nossa volta, à pressa.

Não damos pelo fechar das portas, pelo rodar do manípulo que conseguimos abrir, nem pelo ruir da vida, ao nosso lado. Dormitamos e ressonamos. Fazemos barulho. Vivemos a tomar cafés de palavras quezilentas, a olhar os passos do outro, mas não o outro. Existimos connosco fora da tela, dançamos esquecidos de que as coisas simples apenas têm valor e apreço quando as não temos.

“Ravengar” não existe. Num intervalo qualquer, iremos acordar fora da sala de cinema e olhar tudo, nesga por nesga, frincha por frincha, ponto por ponto e, se ainda formos a tempo, correremos atrás dos cães e gatos, dos leões e dos pássaros - que só agora demos conta que ainda estão a voar – e veremos o mar ausente de naufrágios. Quando dermos por isso, partiremos com um ar pesaroso e paradoxal, à procura de um mundo que nos escapou.

 O bom Homero, um dia, também deixará de dormitar, antes que o filme da vida se acabe, sem dar por isso.

…”na tela surge a palavra intervalo. As luzes da sala acendem-se”. – Estou ansiosa por ver o resto – dizia a mãe dirigindo-se ao bufete.”

 Estamos no intervalo.




[1] CAMPOS, F. , Ravengar, ed. Objetiva, Abril 2012, pg.34
[2] Hor., Arte poét., 359
[3] Personagem central de Ravengar

2 comentários:

  1. Gosto do teu texto, embora não conheça a obra em questão. Curiosamente, " A casa do pó", do mesmo autor, está na minha lista de leituras a realizar, aguardando a minha disponibilidade, pois adoro o romance histórico.

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  2. "Ravengar" - nome de umas das personagens - é a mais recente obra de Fernando Campos. Nem a estória, situada no início do século XX, nem o discurso me encantaram o suficiente para, eventualmente, realizar uma releitura. Penso que está longe da "Casa do pó" que seduz qualquer leitor atento. O texto publicado na "sala das colunas" não passa de uma simples divagação construída a partir de "Ravengar", mas longe da estória de Fernando Campos.

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