Dizem-nos
que fomos ricos… dizem-nos que somos pobres…
1
No dia em que escrevia estas
linhas (1), a Companhia de Teatro de Almada (CTA) estreava “Timão de Atenas”
(Timon of Athens – 1607-1608) atribuída a W. Shakespeare. “Timão de Atenas” foi
a última encenação de Joaquim Benite, recentemente falecido. Rodrigo Francisco,
assistente de Joaquim Benite, assumiu a direção artística do CTA e do Teatro
Municipal de Almada (TMA). O público presente no dia da estreia - envolvido num
misto de emoções, de saudade – entenderá o extremo cuidado colocado nesta
encenação, o que distingue a alma dos grandes homens de teatro. Esteja onde
estiver, Benite continuará a ouvir repetidamente as palmas dos seus atores e do
seu público.
2
“Timão de Atenas”, homem rico, deslumbrava os seus amigos com banquetes e festas sumptuosas.
À sua sombra, gravitavam ilustres atenienses, políticos, homens das artes,
prostitutas, pensadores e os que se diziam seus amigos que o cultuavam com
rasgados elogios e agradecimentos. Um dia, a penúria bateu-lhe à porta e os “amigos”
abandonaram Timão. Em vez dos elogios, começaram a sobrar recusas e
recriminações. Timão resolveu vingar-se e convidou os habituais frequentadores
de sua casa para um banquete semelhante aos banquetes dos tempos de riqueza; mas,
em vez da mesa farta, serviu-lhe apenas pedras acompanhadas de água.
3
- AH, muralhas de Atenas,
vou olhar para vocês pela última vez. Vocês que cercam esses lobos, caiam por
terra e deixem Atenas ao deus-dará. (…)
Escravos e idiotas arranquem do
plenário os veneráveis membros murchos do senado e assumam o poder (…) Falidos
do mundo, uni-vos – em vez de pagarem as dívidas puxem pela navalha e rasguem a
garganta dos credores. (…) Que a fria ciática lese tanto os nossos senadores
que os seus membros fiquem frouxos quanto os seus costumes (…)
Timon vai para a
floresta, onde a fera mais desumana é mais humana que a humanidade (…)
(William
Shakespeare, Timon de Atenas, ato IV,
cena 2 (excertos)).
2
Só, desiludido com a vileza
do ser humano, retirou-se para a floresta. A frugalidade que esta lhe oferecia,
forçou-o a escavar raízes para se alimentar. Na contínua luta pela
sobrevivência encontrou ouro. Muito ouro. Mas de que lhe valia o ouro se não o
podia comer?
3
-
Ouro amarelo, fulgurante, ouro precioso! … Basta uma porção dele para fazer do
preto, branco, do feio, belo; do errado certo, do baixo, nobre; do velho,
jovem, do cobarde, valente.
Ó deuses! por que é isso? O que é isso, ó
deuses?...O ouro arrasta os sacerdotes e os servos para longe do altar, arranca
o travesseiro onde repousa a cabeça dos íntegros. Esse escravo dourado ata e
desata vínculos sagrados, abençoa o amaldiçoado, torna adorável a lepra
repugnante, nomeia ladrões e confere-lhe títulos, genuflexões e a aprovação da
bancada dos senadores (…)
2
É dezembro. Vagueio pelas
ruas e não vejo o cintilar das luzes nos lares. Vive-se triste. É tempo de Natal, de sonhos e de ilusão de paz. Subjugados pelas dificuldades que o ouro
dos outros nos impõe, governados por estrelas cadentes, procuramos alguma luz nas
copas das árvores do Natal. Roubaram-nos o ouro da floresta e fecharam-nos
dentro das muralhas de Atenas.
Dizem-nos que fomos ricos,
dizem-nos que somos pobres, quando somos apenas portugueses - atenienses - à procura de um presépio, mesmo
sem vaca e sem burro. Os burros fugiram todos e andam por ai com os alforges
carregados de ouro a “nomear ladrões, a conferir-lhe títulos,
genuflexões e a aprovação da bancada dos senadores.”
Dizem-nos que somos próximos
de “Timão de Atenas”. Durante as burlescas cerimónias inventadas para darem
brilho aos atos pálidos dos senadores, dizem-nos… para termos esperança.
Dizem-nos… mas já ninguém acredita nas mensagens de Natal dos senadores,
repetidamente vazias…. Mas não deixa de ser NATAL!
(1) –“Timão de Atenas”, atribuído a
Shakespeare, foi levado à cena pela Companhia de Teatro de Almada, em
co-produção com o Teatro Nacional Dona Maria Segunda (TNDMII), no dia 20 de
dezembro.