domingo, 22 de abril de 2012

No café com palavras

No café com palavras e um pirex sentado na cadeira ao lado
Agora que a quantidade já não nos preocupa, porque já temos de quase tudo, está no apogeu o discurso da qualidade. A preocupação não está em ter mais, mas em ter melhor: mais qualidade. Já não preocupa tanto que haja mais escolas, ou mais Universidades, mas que a docência nelas seja excelente. VICTORIA CAMPS, Paradoxos do individualismo, Relógio D’água, Lisboa, 1996
Passei pelo YouTube e cruzei-me com um discurso belo, bem embrulhado na leveza das palavras. Falava de uma sociedade justa, participativa, do direito de sermos diferentes sem restringir a liberdade dos outros, da diferença enriquecedora, da diversidade cultural numa sociedade que se quer mais justa e equitativa, de uma escola de cidadania, de liberdade...
Desliguei o computador. Era o discurso conveniente da qualidade, redondo e de saia comprida preta, floreada.
A figura não era grande, nem pequena. Simplesmente figura desacordada, não realidade. Parecia esquecida de que “a sedução da imagem é efémera, catalisa, impulsiona, mas se não tiver sumo ou corpo perde o brilho e a intensidade des-satura as cores e mostra, quase logo a seguir, o lado patético de antes, pior, intensifica-o pois provoca a sensação do logro” (http://indigo-gm.blogspot.pt).
São os discursos encastoados que nos governam. Os emissores de sons revestem-se de óculos de hastes de massa grossa e tenra e de tecidos verbais que a prática desmembra e rasga. Fazem discursos que outros escreveram em jeito de desastrado panegírico do seu pequeno quintal, agradáveis de ouvir, sedutores, mas dolorosos para os súbditos a quem com ligeireza se chama, em público, cidadãos. “É fácil olhar para o lado, é tentador não ouvir gritos é cómodo fechar a porta…” – continuava aquele trava- línguas no YouTube.
Veio-me à memória a simplicidade de um poema de Alberto Caeiro:
”Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça…
…E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo…")
                              (Alberto Caeiro)

O importante é a voz. Apenas a voz. A boca. O som. Palavras. E o YouTube.
…”adiante…para este mundo…este mundo…essa coisinha querida…antes do tempo…num buraco -…quê?” … …quando de repente sentiu…gradualmente sentiu…os lábios moverem-se…imagine-se…os lábios moverem-se…”- (Samuel Beckett).
E assim se faz um espetáculo dramático.
Porém, “a utilização indevida das palavras que libertam e fazem desejar um mundo emancipado e melhor, devia ser punida”. – Li há pouco num e-mail. Mas ninguém é punido por um discurso vazio. Batemos palmas ao som dos continuados espetáculos de palavras cenografadas por escultores de areia.
Estou num café com um pirex sentado na cadeira ao lado. Arrumei o computador e vou conversando com quem conversa. Falamos disto e daquilo. Mais disto do que daquilo. Das coisas que nunca acontecem. Da vida que às vezes em busca da hipócrita excelência corre com a vida dos outros numa luta ausente de Alcácer-Quibir, mas próxima do quintal de cada um.
Vivemos todos preocupados, sentados à mesa de um café com um pirex na cadeira ao lado, à espera de D. Sebastião.
Desejamos um país de qualidade, escolas de excelência, que apenas existem no rés-do chão do sonho e no gabinete envolto no fumo de tabaco que os amigos também fumam. Somos atordoados por este tipo de discursos YouTube que nos encurralam no abrigo da subserviência.
E o problema é que não temos mais, nem melhor, a não ser um café, um pirex sentado na cadeira ao lado e a Febre de LE CLÉZIO. Ou teremos?

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