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No meio de publicidade, o correio
eletrónico entregava-me uma estória. Li. Era uma “Estória com gente dentro” (Sic,
2009).
Parei um pouco e… por que não
publicá-la n,“Sala das colunas”? “…É uma Ágora simples, onde a conversa pode
seguir longa e pernoitar… espaço onde podem acontecer encontros do
falar…sobre…” (in, Sala das colunas, 2012, março). Espaçosa, permanentemente
aberta a novas experiências, leituras, estilos, testemunhos e a estórias como “ O Tio
Zé”.
“Estórias com gente dentro” não relevava
o jornalista. Também aqui, o autor não aparece. Com o seu conhecimento, mas à revelia, o texto vai ser instalado e divulgado na coluna principal da “sala
das colunas”. “ O Tio Zé” , ou uma estória tecida de rosas com gente
dentro.
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O Tio Zé
A notícia apanhou-a desprevenida, como
todas as más notícias. A notícia da morte do tio Zé, há muito anunciada, chegou
pelo telefone às dez horas da manhã daquele dia cinzento de Fevereiro, tão
cinzento e tão triste que nem a chuva quis aparecer. Só o vento – gélido,
cortante- disposto a levar para longe tudo o que não interessasse ficar por
perto.
Na sua azáfama familiar, a única coisa que
lhe ocorreu foi como iria gerir a sua ausência de casa, nessa tarde, à hora do
funeral. Não tinha aulas e tal facto facilitaria as coisas. Tinha, sim, duas
consultas médicas mas, felizmente, só teriam lugar ao fim da tarde, o que lhe
dava uma certa margem de manobra. Depois do almoço, foi comprar flores. Dois
arranjos para as campas da mãe e do sogro e um ramo para o defunto do dia.
Na
florista, pediu exatamente o tipo de flores que queria para os arranjos
habituais mas, quando a empregada lhe perguntou que tipo de ramo queria,
hesitou. Afinal, não conhecia assim tão bem o tio Zé. Será que ele gostava de
flores? E se gostava, teria flores favoritas? Pelo que conhecia da sua vida,
ela não tinha sido nada fácil. Seria que algures no meio dos seus quotidianos
teria havido tempo e espaço para flores? Fez um esforço de memória mas, nada.
- Faça como entender - respondeu pouco à
vontade.
- É para um senhor ou para uma senhora? –
perguntou, solícita, a empregada.
Os estereótipos têm um efeito de ação
prolongada, muito prolongada – pensou para consigo. E, mais uma vez, a menina
rebelde dentro de si achou que deveria fazer a sua parte.
- Isso não é relevante. Quero um ramo
bonito, só isso.
A
empregada, uma rapariga na casa dos trinta, corou, visivelmente embaraçada.
- Desculpe. É que normalmente…
- Eu sei, eu é que peço desculpa.
Fazia-lhe confusão que alguém tão novo
pudesse aceitar papéis pré – definidos sem qualquer negociação e parecesse
disposto a perpetuá-los devolvendo gestos, mostrando ou escondendo sentimentos
visando, pura e simplesmente, a sua adequação às circunstâncias.
À medida que o ramo ia começando a
ganhar forma, a sua atenção concentrava-se nas flores que iam sendo adicionadas
e combinadas: estrelícias, aspidistras, paus de bambu e, de repente, aquela
sensação de mau – estar que não conseguia explicar. Percorreu, com o olhar,
todo o espaço em redor à procura de qualquer coisa que a sossegasse. De
repente, os seus olhos pousaram num enorme jarrão de rosas brancas silvestres,
daquelas que despontam sem eira nem beira e que, certamente por traquinice,
parecem recrear-se a abrir as portas aos ventos que nos trazem memórias
adormecidas, mas sempre alerta, prontas a atirarem para longe as lembranças vizinhas
do ontem recente.
Sentiu saudades. E a saudade mistura
tudo, não conhece o tempo. Não sabe o que é o antes e o depois. Tudo é
presente. E o presente trazia-lhe, agora, o cheiro intenso das flores da sua
infância, daquelas flores. Usava-as misturadas, brancas e cor-de-rosa, sempre
que queria engalanar qualquer espaço de festa. Curiosamente, não se recordava
onde costumava colher as brancas, mas lembrava-se onde colhia as cor-de-rosa.
Havia imensas junto ao poço do pomar do avô Jorge onde alternavam, conforme a
época do ano, com os lírios roxos, os jarros e os malmequeres.
- Quero aquelas!
- Como disse? – perguntou, espantada, a
rapariga.
- Peço desculpa, o que eu quero dizer é que
também quero um ramo daquelas. Das brancas, lá ao fundo.
- Com
certeza! – anuiu a florista entre a surpresa e o agrado. Afinal, sempre era
mais um ramo e o dia não augurava grande movimento na loja.
De volta ao parque de estacionamento,
depositou as estrelícias na mala do carro, com todo o cuidado, como se pedisse
desculpa pela afronta por que tinham acabado de passar na loja e, pegou, de
braçada, as rosas silvestres. Colocou-as a seu lado, no banco dianteiro do
carro e seguiu para o funeral.
À entrada da igreja, os homens
aglomeravam-se, sob o ar gélido da tarde, em torno de conversas sussurradas e
risos nervosos. Lá dentro, as mulheres devolviam à comunidade as palavras e os
gestos aprendidos, num ritual de fé que nada apressa mas que também nada detém.
Ali estava o universo feminino na sua plenitude, sempre de braço dado com o
nascimento e a morte. O resto da vida, aquela que acontece entre esses dois
momentos, continuava, por ali, a ser assunto de homens. E era disso que se
falava do lado fora da porta.
Percorreu, detalhadamente, a igreja com o
olhar, como sempre fazia nas suas raras visitas à terra. Gostava daquela luz,
daquele ambiente florido, daquelas toalhas de linho bordadas e, sobretudo, da
imagem simples de S. José oferecida por um seu devoto homónimo, da aldeia. Só
depois de se ter ambientado ao local se aproximou do tio José. Depositou as
flores junto à urna e ali ficou, em silêncio, sem saber o que havia de dizer ao
tio que terminara a sua caminhada e que, certamente, olhando-a de algum lugar,
esperava uma palavra sua. Mas ela não tinha nada para lhe dizer. Na verdade,
ela não tinha memória de conversas com o tio. Ainda muito pequena, as suas
vidas tinham seguido rumos diferentes e os seus encontros tinham-se limitado a
breves trocas de palavras em celebrações familiares ou encontros casuais. Mas
guardava do tio muitas imagens felizes, uma espécie de filme antigo, sem som,
com muitos cortes devidos às marcas do tempo. Lembrava-se do seu casamento –
ele era o mais novo dos seis irmãos – com uma linda rapariga de uma aldeia
vizinha. E de como ele tinha abandonado, correndo, o grupo que se preparava
para tirar uma fotografia com os noivos só para conseguir chegar até ela antes
que ela chegasse às flores de aroeira brava que se preparava para colher,
indiferente aos espinhos pontiagudos que se escondiam nelas. Não parecia ter
aprendido muito com isso porque ao longo da vida tinha repetido essa e outras
ousadias, vezes sem conta. Também se lembrava de passear às cavalitas do tio no
arraial, por altura das festas de verão e de como era divertido poder, desse
modo, chegar aos balões e aos enfeites recortados em papel a que também os
outros miúdos aspiravam, sem sucesso. O tio devia achá-la uma ingrata. Em guisa
de desculpa, perguntou em pensamento:
- Gosta das flores que lhe trouxe?
É claro
que não esperava resposta mas ajudá-la-ia a sentir-se melhor. De súbito,
apercebeu-se que alguém se aproximava discretamente e lhe metia o braço no seu.
- Olá, prima! Sabias que estas eram as
flores favoritas do meu pai? Lembras-te do roseiral de rosas bravas brancas que
cobria a cerca que separava a velha serração, da casa em que vivíamos, quando
eu era pequeno? Era um sítio perigoso do qual não nos deixavam aproximar devido
ao arame farpado, mas era lindo de se ver ao longe. A minha mãe costumava
contar que o meu pai, às vezes, saía mais cedo para o trabalho para regar as
roseiras antes de os empregados chegarem e, outras vezes, pedia a um deles que
as regasse antes de largarem o trabalho, ao fim da tarde. Até ao dia em que
alguém lhe disse que se não fossem regadas o seu cheiro seria muito mais
intenso e ele deixou de o fazer. Contava, ainda, que em épocas festivas como a
visita Pascal ele te apanhava saquinhos de pétalas para misturares nas flores
com que atapetavas a entrada da tua porta.
Invadiu-a
um turbilhão de emoções, de lembranças perdidas no tempo. Não, não se lembrava.
Em redor, o silêncio falava de fins e princípios, de sucessões e
descontinuidades, do que parte e do que fica, desse tempo inaugural de nós, em
que tudo estava certo e nós éramos os outros e os outros nós. Do tempo que o
corpo pode não lembrar mas que a Alma não esquece.
Texto belo.Viagem pela vida, pelos recantos da memória. Há laços (flores) que nos ligam aos outros, aos que partiram antes.
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