É sempre tempo de olhar a flor-de-lis
Com
o tempo, vamos mudando o lugar das coisas simples; são simples causa menor e
passam-nos ao lado. Não falámos, não telefonámos, não bebemos um copo e o
brinde ausentou-se. Ficámos por aqui.
A
gata panda saltou de um sofá para o outro e veio alojar-se num cantinho para não
ser incomodada, nem incomodar ninguém. Anichou-se e por ali ficou, sem mandar
recado, sem escrever, sem digitar mensagem, sem telefonar. Afinal é analfabeta
e também já não vai a tempo das novas oportunidades. Morreram antes de chegarem
a velhas, como tantas outras experiências que não chegam a experienciar nada.
Mas a panda gostou que acabassem; assim já não a aborrecem no nicho do seu
descanso.
Anichamo-nos
num café a olhar o tempo, a biblioteca, o rio e um ou outro Carlos, António,
Isabel, Maria, Joaquim a conversarem em silêncio, aos gritos consigo, a caminho
do carro.
Carlos,
ou outro com qualquer outro nome, está a tentar abrir um carro que não é o dele.
Carrega nos botões do comando ajudado pela energia de meia dúzia de palavrões, mas
a máquina não lhe obedece. A porta não se abre. A viatura estacionou noutro
local e o comando não sabe asneiras, não se assusta e não destrava a porta da
viatura que enganou o dono.
Já
é tarde e não telefonámos.
-Tentemos
agora.
-
Água e café, por favor.
As
palavras flutuam e deambulam em torno do castelo alindado de vermelho e
amarelo; do rio cansado que se transformou em lagoa alongada de água para os
patos se aconchegarem junto das piscinas, monstruosamente abobadadas, onde os
pardais se recusam agasalhar e a aninhar.
Estamos
na primavera. Um casal de melros saltita por ali. A flor-de-lis desperta. A panda
dorme.
Paramos
e dormitamos um pouco do tempo à mesa de um pequeno café, a ver coisas simples.
-Deveríamos
ter telefonado.
Às
vezes, um simples telefonema pode fazer com que o rio nunca deixe de o ser, o
castelo continue a ser belo e os pardais, sempre a nicarem, não se recusem a
fazer ninho no assombro da cobertura e a panda deixe de dormitar naquele sofá.
Retiramos
as coisas simples do olhar e esquecemo-nos de fumar um cigarro depois do
almoço, com os amigos. Acomodamo-nos, como a gata, no recanto do sofá ou no
pequeno café, depois… ficamos muito preocupados, desconcertados, albardamo-nos com
a manta do esquecimento, desculpamo-nos e justificamos a manta e o
esquecimento. Andamos distraídos a beber água e café para não adormecermos e não
entendemos a beleza da flor-de-lis, o rio cheio de artrites, o riso de quem
sorri, as portas que não se abrem, os patos a descansarem e o silêncio da panda
a dormir.
Descuidados,
lemos muito ou pouco, vamos poucas ou muitas vezes às bibliotecas e, sem dar
por isso, entramos em falência momentânea com o nome de Plauto, Truculento,
Fronésio – antífrase – e de muitos outros, que a memória não é de tempos
vindouros.
-Até
logo - diz-se para não se ficar calado. Evitam-se os silêncios e somos
simpáticos. Banalizamos o telefone e os telefonemas, os recados e as pessoas
que fazem os recados, as mensagens e os donos dos dedos que carregam as mensagens.
Vulgarizamos as palavras que deveriam ficar por dizer.
-Telefonemos,
agora.
-Não.
Ficamo-nos por aqui.
Pensando
melhor, ainda que um pouco fora de horas, não nos esquecemos: parabéns! É
sempre tempo de enviar uma flor-de-lis. É sempre tempo de olhar a púrpura fulgurante
da flor-de-lis.
Às 7.27 da manhã? Espero que a flor-de-lis não te ande a tirar o sono! Por mim, ainda estou a digerir...
ResponderEliminarGostava de saber onde é que tu, com este talento para a escrita, tens andado metido. Aposto que, como a maioria de nós, andaste a desperdiçar o teu tempo a falar e escrever eduquês. Mas... nunca é tarde. Nem para dar os parabéns aos amigos, nem para tornar os dias dos que nos rodeiam menos sombrios. Obrigada.
"Às 7.27 da manhã?" - Penso que não...isso deve ser coisa de computadores. Às vezes perdem a noção do tempo.
ResponderEliminarSão muito agradáveis as tuas palavras. Gentileza tua - que agradeço. Vou-me entretendo a tecer as palavras que falam sobre coisas simples.
A flor-de-lis nunca tira o sono a ninguém porque é uma flor rara e de fulgurante beleza. Também efémera... como tudo o que é belo.