Ah!
Winnie, Winnie, Winnie[i]
Cena I - As
mesas estão alinhadas em forma de retângulo, prontas para sustentar os
cotovelos de quem chegava.
Chegaram alheios.
Sentaram-se: um recostou o queixo na concha da mão, outro fixou as janelas que
começavam a fechar-se sob as nuvens distantes. Alguns conversavam. Estava feita
a equipa: observadores, agentes e dirigentes, leitores que sabem ler, mesas e
secretárias, fazedores de opinião, engraxadores e cavadores. Há quem pense em silêncio
e permaneça em silêncio e quem converse sem ter nada para dizer. Quase todos se
sentiam agastados com a tarefa que tinham que cumprir.
- Comece-se o ato.
Cena II - O
trilho convocado está tracejado há muito tempo.
Encostados
aos braços dobrados pelos cotovelos, não tinham nada a dizer. Não havia nada para
dizer. Não houve discursos, nem formas de recomeçar.
O
tempo sentia-se quente e sem brisas a tatearem os vidros. Os pássaros esqueceram-se
de aparecer para aliviar aquele jeito de estar e ficaram adormecidos, longe.
-
Acabemos isto e falemos de um novo encontro. Já dissemos tudo por hoje. Corram
as janelas, desencaixilhem os rostos das conchas das mãos e limpem as lentes dos
óculos. Façamos uma pausa para reflexão.
Descruzaram-se
as pernas, arrastaram-se as cadeiras, ajeitaram-se as saias e passaram-se as
mãos a alindar os cabelos. Alguns tossiam, outros engoliam a tosse e o desassossego
das interrogações.
O
dia está bonito. É preciso que se pense que o dia está bonito.
Cena III - A
terra enluarada regressa ao ponto do sol nascente.
Abriram-se novamente as
janelas, as mesas voltaram a ser retângulo e recolocaram-se os rostos nas mãos.
As aves ainda não tinham regressado, nem se sabia se voariam por ali: um nó
doloroso abafava-lhes o canto e o voo. Não vinham, nem cantavam.
Tudo decorria lento. Contaram-se
as palavras entarameladas, a tosse, o engolir em seco, os risos e
alguns sorrisos.
-Terminámos?
-Sim, terminámos.
As cadeiras deslizaram a
custo, as pernas voltaram a descruzar-se e as mãos ficaram sem gestos.
(Re) alindaram-se os cabelos,
apertou-se um pouco mais o cinto, sufocou-se a tosse, as janelas voltaram a
fechar-se e o retângulo de mesas foi desfeito. Definitivamente.
Aos solavancos as conversas
tomaram, a pouco e pouco, conta das inquietações.
-É melhor ficar assim. E
ficou.
Cena IV - Gente
concheada junta-se em redor de “sa senhor”.
Falavam pouco, olhavam mais
e sorriam menos. Todos queriam ouvir, mas não sabiam o quê.
Recomece-se: - cuidado com os
que teimam em voar, deem-se as mãos aos indiscretos, aponte-se o devido lugar
“Àqueles que dizem não” castiguem-se os maus, silenciem-se os silenciosos e faladores, instale-se uma
teia informativa, movam-se inquéritos, promovam-se os fiéis, os crentes e os ofertantes
e tudo será mais tranquilo. Instale-se a guerrilha cá dentro, lá fora, perto ou
longe, nas ruas, avenidas, ruelas, palácios, castelos e casas senhoriais.
Fechem-se todas as janelas para que as montanhas de papéis, ainda que
farpeadas, não voem. Faça-se um relatório em cima de outro, explique-se o
primeiro com um segundo e espalme-se uma foto para fixar bem o tempo e o
momento que se matou.
Amanhã, tudo será diferente:
tudo estará bem na robustez do tempo e “Aquele que diz não”, seguirá Brecht n, “Aquele que diz sim”[ii]:
lançado de um penhasco, edificará o cenário que o depositará na caixa d,”O
Marinheiro”[iii].
A sociedade é nossa e será
nova.
Cena V - Nem
todos acreditam, alguns temem e cruzam olhares…faltam tantos anos!
Fecharam-se as janelas e
atabafaram-se as palavras no fumo desejado do cigarro proibido.
(Voar não é uma evidência. É
apenas sonho de sonhar).
Cena VI - O
timoneiro, crente na sua descrença e na dos outros, desce - ou sobe, tanto faz
- para o seu gabinete, arruma um cigarro no centro da boca e sopra o fumo de
viés.
- "Mha senhor", posso entrar?
- Agora não.
- Desculpe, pensei que as janelas estavam abertas.
Os fazedores de opinião
observaram, observaram muito, e esfregavam as mãos enquanto caminhavam e, no
movimento das palavras, ouviam-se ao fundo da rua. Ali, tudo estava bem.
Afastaram-se e foram tomar café. Voltariam. As aves de arribação voltam sempre
ao local do ninho.
Cena VII - Tudo
é diferente:
- Melhor, pior? Não sei…sei
apenas que não lemos “O Principezinho”[iv]
e, por isso, não se cativaram as ruas que se cruzam pelos campos do rio Tejo. Cavaram-se
túneis inglórios e abriram-se guerras inúteis por dentro e por fora. Num mau
arremedo de Carlo Goldoni[v],
construiu-se uma sociedade - teatro de atores de “commedia Dell, Arte” onde
apenas entraram em cena Polichinelos, Arlequins e um ou outro Pantaleão.
Cai o pano - Regresso
a esta sala das colunas e volto a apoiar os cotovelos numa daquelas mesas que um
dia foram alinhadas em forma de retângulo.
Olhei as mesas, as paredes e
as janelas, os discursos e os afazeres do tempo passado. Fiquei parado num gesto largo
da memória e revisitei Winnie e Willie[vi].
Depois, fixei-me nas janelas. Os pássaros ainda não tinham regressado, mas não
morreram. Teimosos e suaves ouviam-se cantar, distantes, num adejo circular
sobre Winnie.
Ah! Winnie,
Winnie, Winnie… tão angustiante - e só - foi o segundo ato dos teus “Dias felizes”,
porque…na “sociedade atual falta-nos filosofia, precisamos do trabalho de
pensar”[vii]
e tu não pensas. Willie já não te ouve.
[i]
Texto escrito com o pensamento em todas as “Winnie” e todos os “Willie” desta sociedade.
A realidade é, quase sempre, ultrapassada por qualquer semelhança ou
coincidência.
[ii] BERTOLT BRECHT (Augsburg,
10 de Fevereiro de 1898 – Berlim, 14 de Agosto de 1956), Aquele que diz sim; Aquele que diz não, 1929/1930
[iii] FERNANDO PESSOA (Lisboa 13
de Junho de 1888 – Lisboa, 30 de Novembro de 1935), O Marinheiro, 11/12 de Outubro de 1913. Texto publicado na revista
Orpheu; nunca foi representado em vida do autor
[iv] ANTOINE DE SAINT-EXUPERY (29
de Junho de 1900 -31 de Julho de 1944), O
Principezinho, Nova Iorque, 1943
[v] CARLO GOLDONI (Veneza, 25
de Fevereiro de 1707 – Paris 6 de Fevereiro de 1793), reconhecido pela
“commedia dell,art”
[vi] SAMUEL BECKETT (Dublin,
13 de Abril de 1906 – Paris 22 de Dezembro 1989) Dias felizes – estreia em Nova Iorque em 1961. Winnie e Willie são
personagens do texto dramático em dois atos –
Dias felizes
[vii] JOSÉ SARAMAGO (Azinhaga,
16 de Novembro de 1922 –Lanzarote, 18 de Junho de 2010) - Prémio Nobel da
Literatura, 1998
Sem comentários:
Enviar um comentário