domingo, 17 de março de 2013

ESQUECIMENTOS


Talvez a televisão não tenha ficado ligada

Não sei se a Maria Inês continua a correr, corredor fora, com a boneca debaixo do braço, ou se a assistente, bonita, alta e quase magra, ainda espera pelas leituras da máquina de eletrocardiogramas. Sei apenas que, algures, numa qualquer parte destes recantos de espera, os olhos vão tornando o tempo mais pequenino a verem quem passa, quem entra e quem sai, ou entretidos a decifrar os rótulos ensimesmados sobre as portas: “cardiology; reception; counter; exit; acesso restrito”, sempre à espera que alguma se abra. Não há muita coisa para dizer, apenas alguns silêncios inquietos são entrecortados com preocupações que o matutar na vida oferece.

Por aqui, espera-se que tudo esteja bem, mas nem sempre está:

- Apagaste a televisão?
- Quem, eu?
- Foste o último a sair…
- Não, não sei.
- Se calhar deixámos a televisão acesa.
- Então, viemos embora e deixámos a televisão ligada?
-Talvez não…não sei… já nem nos lembramos do que fazemos…ao que nós chegámos… só não nos esquecemos de vir ao médico e do saquito dos medicamentos. Andamos por aqui a trambolhar pelos cantos com o saquito de plástico dos medicamentos, agarrados, como se fossemos uns drogaditos.
- Não te preocupes, talvez a televisão não tenha ficado acesa!
- E a luz está muito cara!
- Pois está…e se fosse só a luz…

Pouco convictos com a estória da televisão, olharam-se por entre os sulcos das rugas. Ele pegou num jornal deixado por ali ao acaso, olhou os títulos da primeira página e deixou-o cair para cima da cadeira do lado. Aquilo não lhe interessava. Coisas dos outros.

- Estamos velhos!
- Sr. Manuel, faça favor.
- Olha, é a nossa vez. Hoje demorou menos tempo.

Esperaram pouco e demoraram pouco.

- Pronto, estamos aviados, já temos a receita dos medicamentos… mas já fica caro vir à consulta…

A voz arrastava-se com os passos que iam ziguezagueando pelo corredor.

- A televisão ficou ligada?
- Deixa lá. Demorámos pouco tempo… e já temos a receita. Aqueles comprimidos, redondos e brancos, acabaram ontem… Ainda hoje vais à farmácia?
- Talvez…depois de passarmos por casa…e se tiver tempo.
- Tempo? – e esboçou um sorriso breve.

Lá fora, sentia-se o rio do esquecimento a correr para a solidão. 

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