Talvez
a televisão não tenha ficado ligada
Não
sei se a Maria Inês continua a correr, corredor fora, com a boneca debaixo do
braço, ou se a assistente, bonita, alta e quase magra, ainda espera pelas
leituras da máquina de eletrocardiogramas. Sei apenas que, algures, numa
qualquer parte destes recantos de espera, os olhos vão tornando o tempo mais
pequenino a verem quem passa, quem entra e quem sai, ou entretidos a decifrar os
rótulos ensimesmados sobre as portas: “cardiology; reception; counter; exit;
acesso restrito”, sempre à espera que alguma se abra. Não há muita coisa para
dizer, apenas alguns silêncios inquietos são entrecortados com preocupações que
o matutar na vida oferece.
Por
aqui, espera-se que tudo esteja bem, mas nem sempre está:
- Apagaste
a televisão?
-
Quem, eu?
- Foste
o último a sair…
- Não,
não sei.
- Se
calhar deixámos a televisão acesa.
- Então,
viemos embora e deixámos a televisão ligada?
-Talvez
não…não sei… já nem nos lembramos do que fazemos…ao que nós chegámos… só não
nos esquecemos de vir ao médico e do saquito dos medicamentos. Andamos por aqui
a trambolhar pelos cantos com o saquito de plástico dos medicamentos,
agarrados, como se fossemos uns drogaditos.
- Não
te preocupes, talvez a televisão não tenha ficado acesa!
- E
a luz está muito cara!
-
Pois está…e se fosse só a luz…
Pouco
convictos com a estória da televisão, olharam-se por entre os sulcos das rugas.
Ele pegou num jornal deixado por ali ao acaso, olhou os títulos da primeira
página e deixou-o cair para cima da cadeira do lado. Aquilo não lhe
interessava. Coisas dos outros.
- Estamos
velhos!
- Sr.
Manuel, faça favor.
- Olha,
é a nossa vez. Hoje demorou menos tempo.
Esperaram
pouco e demoraram pouco.
-
Pronto, estamos aviados, já temos a receita dos medicamentos… mas já fica caro
vir à consulta…
A
voz arrastava-se com os passos que iam ziguezagueando pelo corredor.
- A
televisão ficou ligada?
- Deixa
lá. Demorámos pouco tempo… e já temos a receita. Aqueles comprimidos, redondos
e brancos, acabaram ontem… Ainda hoje vais à farmácia?
-
Talvez…depois de passarmos por casa…e se tiver tempo.
-
Tempo? – e esboçou um sorriso breve.
Lá
fora, sentia-se o rio do esquecimento a correr para a solidão.
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