sábado, 3 de novembro de 2012


Sobre a nudez forte da verdade,
o manto diáfano da fantasia

(Epígrafe de “A Relíquia” de Eça de Queirós

Avaliações (3)

                                                  (Continuação)



V - Avaliação externa das escolas

A ministra ensinadora de sorriso metálico, (aquela que considerou que a “Parque escolar” tinha sido uma festa!) curadora do assunto – tanto…que “ajudou” a cair o governo – foi premiada com uma viagem laboral não sei para onde, pela “beleza” que deixou às escolas. Veio outra ministra mais ridente, coisa que nunca se chegou a saber bem porquê. As escolas continuavam tristes e amargas. Sorrisos, apenas os da ministra, superiormente parodiada por um miúdo aprendiz. Os sindicatos perderam oportunidades como nunca tiveram e, por entre desculpas e lamúrias, deixaram fugir um tempo nobre de união entre os docentes deste país. Não será fácil voltar a encontrar nas ruas de Lisboa 120000 ou 130000 mil professores unidos pela mesma voz. Apesar de tudo, o teimoso governo caiu. Custou, mas caiu e foi-se embora. “Quem cá ficar que feche a porta” – pensou enquanto o avião deslizava pela esticada pista. E vieram outros e algumas esperanças. Os que chegaram e as desafortunadas esperanças foram-nos deixando de boca aberta. “Trafulhas” - diria o meu pai se fosse vivo. “Trafulhas”- digo eu que ainda ando por aqui. “Um homem sem palavra é um homem que não presta para nada” - diria a minha mãe habituada aos negócios da terra sem necessidade de um único papel. O negócio era feito de viva voz e isso bastava. Nunca teve problemas. Bastava a palavra, mas isso é coisa que já não existe. Palavra… eles não têm. Produzem sons que preenchem discursos vazios. Auto - contemplam-se nas leis que vão parindo numa noite de insónia mal preocupada com o bem deste país.


A esperança de melhores dias foi varrida das escolas. Continuaram os papéis, as reuniões e os grupitos tombados sob o esforço de viver e trabalhar numa escola. Pouco se alterou, mas mudou qualquer coisita. Alguns processos foram caindo, simplificaram-se ou dilataram-se no tempo, mas o que foi ficando continuou a navegar no meio de paradoxos e a deixar marcas à espera que o tempo vá apagando as mágoas da lembrança.

VI - www.ige.min-edu.pt

Chega de conversa. Deixemos estas reles notas à margem do tema central e falemos da avaliação externa das escolas.

Tenho acompanhado a evolução do processo da avaliação externa das escolas por alguma legislação que vou consultando e pela leitura de diversos relatórios de avaliação de diferentes escolas, a partir do sítio www.ige.min-edu.pt.

Confesso que cada vez me encontro mais confuso e mais convencido da magreza das vantagens da aplicação deste processo. No final de cada relatório que leio, fico apenas com mais uma mão cheia de questões sem resposta.

                                                          (continua)

domingo, 28 de outubro de 2012

Avaliações (2)



Avaliações

                                                                                                   (Continuação)
Sobre a nudez forte da verdade,
o manto diáfano da fantasia

(Epígrafe de “A Relíquia” de Eça de Queirós)


IV Sua Excelência o SIADAP

A administração pública ficou cheia de intenções embrulhadas num pomposo título que dá pelo nome de SIADAP. Não sei se consigo decifrar porque a coisa é tão complicada como a sua aplicação. Penso que é assim: Sistema integrado de avaliação do desempenho da administração pública. Entendamo-nos: se o rótulo não é fácil de digerir a sua aplicação é dura, complexa e, por isso, não raras vezes parece uma simples brincadeira de crianças a jogar ao faz de conta. Se não é explique-se: porque é que alguns setores da administração não aplicaram ou se aplicaram, não lhe deram grande importância? Porque é que em muitas situações a avaliação é efetuada, com frequência, depois de muito tempo decorrido após o desempenho a avaliar? Finalmente, se não há dinheiro, se não há progressão na carreira, fica-se apenas pelos valores éticos de melhoria? Pronto: este parâmetro não correu bem, agora prometo que para o ano vou fazer melhor.

Tudo isto significa que parte do descrito nos diplomas legais se tornou pouco viável. Hipócrita, tem servido para cumprimentos de sorrisos amarelos e para delimitar inúteis campos de poder. Valeu (vale) a pena? O caminho percorrido e a percorrer em cada dia melhorou com o SIADAP? A propósito, salvo erro, já se caminha na série SIADAP 3 (tipo Big brother, série 3), sempre com o pregão de melhoria...melhoria …Tantos estudos encomendados, tantos inquéritos por “dá cá aquela palha”… esperemos que um dia também apareça uma reflexão crítica sobre o SIADAP, 1,2,3 ou 4… que não esqueça as angústias e o tempo que cada funcionário perdeu (perde) com um processo de “melhoria e excelência ”que parece ter nascido de "pernas para o ar".


As melhorias e a excelência que se perseguem, teimosamente, não aparecem, mas vão tracejando marcas dolorosas, injustiças, inimizades e ambientes de cortar à faca.

 (Continua)

sábado, 20 de outubro de 2012

Avaliações (1)


Sobre a nudez forte da verdade,
o manto diáfano da fantasia

(Epígrafe de “A Relíquia” de Eça de Queirós)
Avaliações

I -  Preâmbulo

Ao longo da atividade laboral de qualquer cidadão, há momentos de interrogações, dúvidas, medos e desilusões. Caminhamos, trabalhamos e convivemos com e como ilustres desconhecidos. Seguimos lado a lado e conversamos sobre o que vai acontecendo, feitos suaves “Moscardos” de Luigi Pirandello que se veem ao espelho do dia-a-dia. Sentimos cada momento que vamos apagando com uma esponja embebida do instante e ficamos tranquilos. Simpáticos, desejamos - ou evitamos - que se tracem novos caminhos e novos jeitos de caminhar. Deixamos cair as coisas por esta e por aquela razão ou, pelo contrário, cegos e teimosos, prosseguimos na construção de ruínas num esforço inglório de dar aos outros a realidade que cada um julga ter. Mas, um dia, disseram-nos que tínhamos o nariz torto e, então, caímos na realidade.

 II - Boneco de nariz empinado

Nos anos recentes, a “avaliação” foi tema recorrente de conversa, de discussões sustentadas por afincada argumentação, sempre cada vez melhor e, provavelmente, inútil. Hoje, fala-se de “avaliação”, mas o tema já deixou de ser epicentro de conversa, de discussão e de enoitadas controvérsias pois, numa tarde sem álcool, as esferas do poder decidiram reparar que tinham nas mãos um boneco com olhar de espanto, de  nariz empinado, descaído para a esquerda ou para a direita. Os presidentes, diretores e demais chefes, nessa tarde cinzenta, revisitaram-se ao espelho, olharam para o seu nariz e emitiram juízo: nasceu torto e pronto. Desde então, o boneco, fonte de apaixonadas teses, tornou-se ídolo de menor importância.

III - Inquietação

Correu um tempo de implementação dos mais diversos processos de avaliação: nas empresas, câmaras, juntas de freguesia, secretarias, escolas e por aí além. Tudo o que se fazia deveria ser avaliado. Foram desenhados instrumentos de avaliação suportados por inventadas metodologias sempre defendidas como as melhores. As grelhas de registo coloridas acompanhavam o avaliado para onde quer que fosse. A observação laboral tornou-se quase exaustiva. Os programas informáticos pretendiam facilitar, mas não dispensavam as evidências enroladas nas folhas de papel. Aqui e ali subiam ao trono alguns pregoeiros que, com novas fichas grelhadas nas mãos, se mostravam finos conhecedores dos benefícios da avaliação. O valor do trabalho de cada um passou também a depender do resultado da observação dos dossiês bem gordos, dos relatores, dos observadores e das mariposas atentas à abundante responsabilidade que tinham nas mãos. A inquietação surgiu nas empresas, câmaras, juntas de freguesia, secretarias, escolas e por aí além.
(Continua)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Voltar ao assunto

- Ora aqui está uma maneira de voltar ao assunto!

 
Depois de algum tempo sem publicar, voltei à “Sala das colunas”, agora com um desenho diferente.

As colunas “Retratos vazios”, Artes e letras” e “Fotográfica” ainda não se apresentam como se pretendia. Estáticas e longas, dificultam a publicação, limitam a oportunidade de leitura e do comentário.

O objetivo de separar os temas pelas colunas que suportam a "Sala" seria, teoricamente, tornar mais fácil a consulta e a leitura; no entanto, tal facto veio a revelar-se pouco funcional para o visitante e pouco facilitador de novas publicações. 

Numa futura reorganização, iremos procurar encontrar nova forma de divulgar textos e imagens nas referidas colunas, procurando sempre que o visitante encontre, em cada recanto do blogue, a simplicidade, a dignidade e o espaço adequado para o diálogo proposto na abertura da “Sala das colunas”.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

INTERVALO


INTERVALO

Na tela surge a palavra intervalo. As luzes acendem-se. – Estou ansiosa por ver o resto – dizia a mãe dirigindo-se ao bufete…

Acabei de ler “Ravengar” de Fernando Campos. A estória deambula por entre jogos de interesses, peripécias rocambolescas, amor, naufrágios e misteriosos cavalheiros. “Ravengar é um texto de homenagem à linguagem cinematográfica”, onde se cruzam segmentos da linguagem teatral e memórias do texto fílmico do tempo do cinema mudo.

A intriga, demasiado rocambolesca para o meu gosto, apesar de tudo, foi-me segurando, sentou-me numa sala e apagou-me as luzes. Fechei a leitura integral da obra, não bati palmas ao “filme”, mas mantive na memória a epígrafe do livro: “Por vezes o bom Homero dormita.

 
Vamos seguindo o “ nosso filme” a dormitar à espera que as luzes se acendam e que chegue um qualquer intervalo. Sentamo-nos inseguros na plateia e aguardamos que a sessão termine. As imagens vão correndo, um ou outro som mais forte coloca-nos em sobressalto. Seguimos a dormitar ou a ressonar pela vida fora e, às vezes, quando acordamos, o filme já terminou e não demos pelo que foi passando à nossa frente: carros e carroças cheios de mentiras, cavalos, cães, gatos a passarem fome, rinocerontes fartos de gordura, algumas aves sem voarem, dias, semanas e anos inutilmente parados, traições misteriosamente rocambolescas, naufrágios e falências mentirosas, roubos, sacanices e mortes de noivos que nunca o chegaram a ser.

Ao som desvairado de um piano, a senhorinha Jessie Walcott![3] surge na tela com um olhar belo e enigmático. Nesta estória também há pessoas que passam por nós sem lhe dizermos nem bom dia, nem adeus. Não nos dizem, nem dizemos, nada; outras são demasiado bonitas para entrarem neste filme. Tudo está bem, se não acontece no pequeno cenário que construímos à nossa volta, à pressa.

Não damos pelo fechar das portas, pelo rodar do manípulo que conseguimos abrir, nem pelo ruir da vida, ao nosso lado. Dormitamos e ressonamos. Fazemos barulho. Vivemos a tomar cafés de palavras quezilentas, a olhar os passos do outro, mas não o outro. Existimos connosco fora da tela, dançamos esquecidos de que as coisas simples apenas têm valor e apreço quando as não temos.

“Ravengar” não existe. Num intervalo qualquer, iremos acordar fora da sala de cinema e olhar tudo, nesga por nesga, frincha por frincha, ponto por ponto e, se ainda formos a tempo, correremos atrás dos cães e gatos, dos leões e dos pássaros - que só agora demos conta que ainda estão a voar – e veremos o mar ausente de naufrágios. Quando dermos por isso, partiremos com um ar pesaroso e paradoxal, à procura de um mundo que nos escapou.

 O bom Homero, um dia, também deixará de dormitar, antes que o filme da vida se acabe, sem dar por isso.

…”na tela surge a palavra intervalo. As luzes da sala acendem-se”. – Estou ansiosa por ver o resto – dizia a mãe dirigindo-se ao bufete.”

 Estamos no intervalo.




[1] CAMPOS, F. , Ravengar, ed. Objetiva, Abril 2012, pg.34
[2] Hor., Arte poét., 359
[3] Personagem central de Ravengar

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Olha à tua volta

Olha à tua volta

Aproximaram-se da avenida e dos semáforos, vindos dos cafés, da sapataria, da estação ferroviária, do Rossio, dos Restauradores, da avenida da Liberdade. Nas margens da passadeira de peões, frente a frente, formavam-se pequenos magotes a olharem o outro lado da rua e as cores dos sinais. Eram eles que ditavam quem deveria ser primeiro. Os semáforos retinham os olhares alinhados e marcavam o início e o fim do tempo de cada um; já era tempo dos automóveis pararem e deixarem a rua para os peões e os condutores a pianizar o volante com os dedos nervosos. Todos comandados pelo ritmo da luz verde, amarela, vermelha.

Aproximei-me do grupo que esperava à frente do teatro nacional. O amarelo apareceu e desapareceu. O verde. O verde que os peões esperavam por entre o espreitar do relógio e os olhares indiscretos para o outro lado da passadeira.

Verde. Caiu o verde. Podem atravessar a avenida. Podemos atravessar enquanto o verde relampejar. Os dois grupos formados à pressa, postados no topo das listas brancas, entram rápidos no empedrado. Alguns correm aos ziguezagues, irreverentes e desalinhados. No meio da via, juntam-se, trocam de lugar: metade para um lado, outra metade para o outro. Cada um olha para o seu lado da vida e da estrada e segue o seu caminho com pressa ou sem pressa, em silêncio, à conversa, de mãos dadas, ou de olhos desconfiados dos companheiros de estrada e com medo dos automóveis que travam próximos de quem se tornou um entrave na corrida citadina.

No centro da passadeira desfez-se o grupo de caminhantes em sentidos opostos. Fixei o listado de branco da passadeira. À minha frente, no chão, podia ler-se: olha à tua volta. São os teus adversários. Despacha-te para seres o primeiro. Mais ou menos isto. Não fixei bem o texto, nem o produto publicitado. Voltei a ler e, como quem procura não sei o quê, voltei para trás. Abandonei a passadeira, os outros peões, os automóveis, a estação do Rossio e o teatro nacional.
Um grupo excursionista chegou, olha tudo e todos. Atravessa lento.
Tudo voltava a repetir-se depois: formavam-se novos grupos nos topos da passadeira, os automóveis voltavam a parar e, de novo, a correr. Sempre à espera do verde, amarelo e vermelho.

Eram adversários uns dos outros.

São estes sinais que nos comandam e nos tornam autómatos quando, ao mesmo tempo, passamos mensagens de heroicidade individual e edificamos estátuas de heróis vazios. Teimamos em viver assim. Sobreviver parece semelhar-se a um breve caminhar por uma estreita rua tecida de passadeiras desumanas: São teus adversários. Despacha-te para seres o primeiro. Todos os meios servem para nos tornar egoístas e primeiros.
Abandonei a passadeira, ziguezagueei e, cidade fora, segui o caminho da avenida da liberdade, onde não tive adversários nem nunca fui primeiro.


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Ah! Winnie, Winnie, Winnie


Ah! Winnie, Winnie, Winnie[i]

Cena I - As mesas estão alinhadas em forma de retângulo, prontas para sustentar os cotovelos de quem chegava.

Chegaram alheios. Sentaram-se: um recostou o queixo na concha da mão, outro fixou as janelas que começavam a fechar-se sob as nuvens distantes. Alguns conversavam. Estava feita a equipa: observadores, agentes e dirigentes, leitores que sabem ler, mesas e secretárias, fazedores de opinião, engraxadores e cavadores. Há quem pense em silêncio e permaneça em silêncio e quem converse sem ter nada para dizer. Quase todos se sentiam agastados com a tarefa que tinham que cumprir.

- Comece-se o ato.

Cena II - O trilho convocado está tracejado há muito tempo.

Encostados aos braços dobrados pelos cotovelos, não tinham nada a dizer. Não havia nada para dizer. Não houve discursos, nem formas de recomeçar.
O tempo sentia-se quente e sem brisas a tatearem os vidros. Os pássaros esqueceram-se de aparecer para aliviar aquele jeito de estar e ficaram adormecidos, longe.
- Acabemos isto e falemos de um novo encontro. Já dissemos tudo por hoje. Corram as janelas, desencaixilhem os rostos das conchas das mãos e limpem as lentes dos óculos. Façamos uma pausa para reflexão.

Descruzaram-se as pernas, arrastaram-se as cadeiras, ajeitaram-se as saias e passaram-se as mãos a alindar os cabelos. Alguns tossiam, outros engoliam a tosse e o desassossego das interrogações.
O dia está bonito. É preciso que se pense que o dia está bonito.

Cena III - A terra enluarada regressa ao ponto do sol nascente.

Abriram-se novamente as janelas, as mesas voltaram a ser retângulo e recolocaram-se os rostos nas mãos. As aves ainda não tinham regressado, nem se sabia se voariam por ali: um nó doloroso abafava-lhes o canto e o voo. Não vinham, nem cantavam.
Tudo decorria lento. Contaram-se as palavras entarameladas, a tosse, o engolir em seco, os risos e alguns sorrisos.
-Terminámos?
-Sim, terminámos.

As cadeiras deslizaram a custo, as pernas voltaram a descruzar-se e as mãos ficaram sem gestos.
(Re) alindaram-se os cabelos, apertou-se um pouco mais o cinto, sufocou-se a tosse, as janelas voltaram a fechar-se e o retângulo de mesas foi desfeito. Definitivamente.
Aos solavancos as conversas tomaram, a pouco e pouco, conta das inquietações.
-É melhor ficar assim. E ficou.

Cena IV - Gente concheada junta-se em redor de “sa senhor”.

Falavam pouco, olhavam mais e sorriam menos. Todos queriam ouvir, mas não sabiam o quê.
Recomece-se: - cuidado com os que teimam em voar, deem-se as mãos aos indiscretos, aponte-se o devido lugar “Àqueles que dizem não” castiguem-se os maus, silenciem-se os silenciosos e faladores, instale-se uma teia informativa, movam-se inquéritos, promovam-se os fiéis, os crentes e os ofertantes e tudo será mais tranquilo. Instale-se a guerrilha cá dentro, lá fora, perto ou longe, nas ruas, avenidas, ruelas, palácios, castelos e casas senhoriais. Fechem-se todas as janelas para que as montanhas de papéis, ainda que farpeadas, não voem. Faça-se um relatório em cima de outro, explique-se o primeiro com um segundo e espalme-se uma foto para fixar bem o tempo e o momento que se matou.
Amanhã, tudo será diferente: tudo estará bem na robustez do tempo e “Aquele que diz não”, seguirá Brecht n, “Aquele que diz sim”[ii]: lançado de um penhasco, edificará o cenário que o depositará na caixa d,”O Marinheiro”[iii].
A sociedade é nossa e será nova.

Cena V - Nem todos acreditam, alguns temem e cruzam olhares…faltam tantos anos!

Fecharam-se as janelas e atabafaram-se as palavras no fumo desejado do cigarro proibido.
(Voar não é uma evidência. É apenas sonho de sonhar).

Cena VI - O timoneiro, crente na sua descrença e na dos outros, desce - ou sobe, tanto faz - para o seu gabinete, arruma um cigarro no centro da boca e sopra o fumo de viés.

- "Mha senhor", posso entrar?
- Agora não.
- Desculpe, pensei que as janelas estavam abertas.
Os fazedores de opinião observaram, observaram muito, e esfregavam as mãos enquanto caminhavam e, no movimento das palavras, ouviam-se ao fundo da rua. Ali, tudo estava bem. Afastaram-se e foram tomar café. Voltariam. As aves de arribação voltam sempre ao local do ninho.

Cena VII - Tudo é diferente:

- Melhor, pior? Não sei…sei apenas que não lemos “O Principezinho”[iv] e, por isso, não se cativaram as ruas que se cruzam pelos campos do rio Tejo. Cavaram-se túneis inglórios e abriram-se guerras inúteis por dentro e por fora. Num mau arremedo de Carlo Goldoni[v], construiu-se uma sociedade - teatro de atores de “commedia Dell, Arte” onde apenas entraram em cena Polichinelos, Arlequins e um ou outro Pantaleão.

Cai o pano - Regresso a esta sala das colunas e volto a apoiar os cotovelos numa daquelas mesas que um dia foram alinhadas em forma de retângulo.

Olhei as mesas, as paredes e as janelas, os discursos e os afazeres do tempo passado. Fiquei parado num gesto largo da memória e revisitei Winnie e Willie[vi]. Depois, fixei-me nas janelas. Os pássaros ainda não tinham regressado, mas não morreram. Teimosos e suaves ouviam-se cantar, distantes, num adejo circular sobre Winnie.
Ah! Winnie, Winnie, Winnie… tão angustiante - e só - foi o segundo ato dos teus “Dias felizes”, porque…na “sociedade atual falta-nos filosofia, precisamos do trabalho de pensar”[vii] e tu não pensas. Willie já não te ouve.


[i] Texto escrito com o pensamento em todas as “Winnie” e todos os “Willie” desta sociedade. A realidade é, quase sempre, ultrapassada por qualquer semelhança ou coincidência.
[ii] BERTOLT BRECHT (Augsburg, 10 de Fevereiro de 1898 – Berlim, 14 de Agosto de 1956), Aquele que diz sim; Aquele que diz não, 1929/1930
[iii] FERNANDO PESSOA (Lisboa 13 de Junho de 1888 – Lisboa, 30 de Novembro de 1935), O Marinheiro, 11/12 de Outubro de 1913. Texto publicado na revista Orpheu; nunca foi representado em vida do autor
[iv] ANTOINE DE SAINT-EXUPERY (29 de Junho de 1900 -31 de Julho de 1944), O Principezinho, Nova Iorque, 1943
[v] CARLO GOLDONI (Veneza, 25 de Fevereiro de 1707 – Paris 6 de Fevereiro de 1793), reconhecido pela “commedia dell,art”
[vi] SAMUEL BECKETT (Dublin, 13 de Abril de 1906 – Paris 22 de Dezembro 1989) Dias felizes – estreia em Nova Iorque em 1961. Winnie e Willie são personagens do texto dramático em dois atos Dias felizes
[vii] JOSÉ SARAMAGO (Azinhaga, 16 de Novembro de 1922 –Lanzarote, 18 de Junho de 2010) - Prémio Nobel da Literatura, 1998